Odiava a modernidade, esta máquina inescrupulosa que tudo atropela. Sim, odiava-a. Tinha que achar um culpado, afinal, alguém sempre é culpado. Nem que seja o mordomo, como seria num policial ruim do séc. XIX. Mas aqui não haviam mordomos, só a modernidade. Haveria de ser culpa dela.
Explica-se. Morava sozinho. Tinha lá seus 30 e tantos anos (ta, quase quarenta). Trabalhava numa repartição pública qualquer, tinha um emprego qualquer. Tinha “estabilidade de emprego”, algo que, pelo que lhe diziam, era muito bom. Nunca fora pra ele, porque mais “estabilidade” só teria se estivesse enterrado. Nunca atrasava uma conta, nunca se atrasava em qualquer coisa, nunca reclamava, ou olhava torto, ou esbravejava, ou nada. Só vivia.
Festa de fim de ano. Todo o grupo reunido, e lá estava ele. Não era o centro das atenções, todos lhe sorriam. Sempre dele se lembrariam como “bonzinho”. Era o que era. “Bonzinho”. Era o orgulho do chefe, um sujeito 10 anos mais novo, que não precisava fazer muito na vida, porque sua família haveria de sustentá-lo para todo o sempre. Amém. E o foi o tal chefe que acabou com sua vida. Pois veja bem, neste festa de fim de ano, ganhou um celular. Um desses modernos grilos, que pulam nos bolsos dos jovens, que parecem ter ao menos 10 bocas para atender tantas chamadas. Ganhou, fez-se grato, pôs seu melhor sorriso, disse um entrecortado “obrigado, não precisava”, levou-o para casa, leu o manual de instruções, carregou-o, nutriu-o com todo o seu amor (ou pelo menos com sua energia elétrica). Muniu-se de coragem, ligou-o. Bzzz. O bicho vem à vida. Treme em sua mão. Ele está tenso. É um grande momento em sua vida. Suor escorre de seu rosto.
Há 3 dias não vai trabalhar. Não faz a barba, não escova os dentes. Continua sentado em frente ao celular, que toca, febrilmente, à sua procura. Mas ele não está mais ali. No momento em que ligou a traquitana, lembrou-se, viu, percebeu não ter para quem ligar. Naquele exato instante percebeu o quão vazia sua vida era. Por culpa dum celular, o instrumento de comunicação das massas, percebeu que era sozinho.
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